sexta-feira, 9 de março de 2012

Inelegibilidades restauradas

Desde o início eu alertava para o fato de que não existe direito adquirido a um dado regime de inelegibilidades, nem mesmo a um prazo de duração desse óbice à candidatura.

Muitos devem estar se perguntando sobre o que ocorre com aquele que, tendo incidido em causa de inelegibilidade no passado, já viu o prazo anteriormente definido fluir completamente.

Respondendo a essa indagação, afirmo que qualquer prazo de inelegibilidade, superado ou em andamento, deve ceder lugar aos novos limites temporais definidos pela LC n˚ 135/2010 (Lei da Ficha Limpa). Assim, alguém que, tomando-se por exemplo, teve suas contas públicas rejeitadas estava antes sujeito à inelegibilidade por três anos. Pelas novas regras, o prazo passou a ser de oito anos. Por isso, mesmo que aquele triênio inicialmente definido tenha sido integralmente ultrapassado, voltará o postulante ao mandato a incidir em vedação à candidatura.

Isso é assim porque a Lei da Ficha Limpa introduz prazos mais longos que as normas por ela revogadas. E não se adquire o direito a estar submetido a um certo conjunto de condições jurídicas para a candidatura.

Questão um pouco mais delicada é a referente aos condenados por abuso de poder político, econômico ou dos meios de comunicação. Segundo o inciso XIV do art. 22 da LI estes serão submetidos à “sanção” de inelegibilidade e à cassação do registro ou diploma outorgados ao candidato beneficiado.

Muitos se apressaram a ver nisso uma forma de “inelegibilidade-sanção” ou, para Adriano Soares da Costa, uma “inelegibilidade cominada simples”. Tais figuras, todavia, não existem no Direito Eleitoral. A inelegibilidade é sempre uma condição jurídica, nunca uma sanção. E julgo desnecessário argumentar contra o recurso ao mais indigente dos recursos interpretativos, que é o apego desmedido à literalidade da lei.

As inelegibilidades não possuem natureza penal, devo insistir. Elas são, como brilhantemente preleciona Dalmo Dallari, condições sem cuja observância não se pode alcançar o status jurídico de candidato.

Também no abuso de poder isso se observa. Quando o candidato é descoberto na prática desse desvio, incorre em uma condição negativa de eficácia futura (para as eleições que se realizarão nos próximos oito anos) e numa sanção expressamente prevista pelo art. 22, XIV, da LI: a cassação do diploma. A referida norma contém, frise-se, uma condição (a inelegibilidade) e uma sanção (a cassação do registro ou diploma).

O inciso XIV do art. 22 sequer precisaria, aliás, mencionar a inelegibilidade que se abate sobre o praticante do abuso de poder. A alínea d, do inc. I, do art. 1˚ da LI já o faz ao estabelecer a inelegibilidade de todos “os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes”.

Então, se pode afirmar que aquele condenado por abuso de poder nas eleições está, desde logo, submetido a prazo de inelegibilidade de oito anos, o que independe de qualquer sentença ou acórdão que “imponha” essa restrição eleitoral. Não é o órgão judicial quem fixa tal inelegibilidade, mas a lei. Se alguma referência ao prazo de inelegibilidade faz-se constar do julgado, ele não substitui a fonte da sua fixação: a expressa disposição legal.

Outro argumento se presta à demonstração de que não se está diante de uma sanção. O art. 22 da LI fala, em seu inciso XIV, sobre a incidência de uma inelegibilidade e sobre a imposição de uma cassação de registro ou de diploma. A segunda medida, esta sim de caráter sancionatório, incide apenas sobre “o candidato beneficiado”. A inelegibilidade recai sobre os responsáveis pelo abuso.

Se o candidato não praticou ele próprio o abuso, estará submetido apenas à cassação do registro ou diploma, não à inelegibilidade. Já os responsáveis pelo ato estarão submetidos apenas à inelegibilidade, que os acompanhará pelos oito anos que virão. Então, não se pode dizer em relação a estes que sofrerão qualquer sanção. Incidiram, isso sim, em uma hipótese de inelegibilidade dotada da mesma natureza jurídica que caracteriza qualquer outra: a de condição.

A inelegibilidade nesse caso, repito, deriva não de imposição judicial, mas de determinação contida na lei. Sujeita-se, pois, às mudanças legislativas que sobrevenham. Sendo assim, se o prazo de uma inelegibilidade é expandido, é irrelevante que tenha constado do julgado qualquer determinação em sentido diverso.

Sendo objetivo: os que tiveram contra si definida judicialmente uma inelegibilidade por três anos em virtude de abuso de poder estão submetidos agora ao novo prazo de oito anos fixado pela Lei da Ficha Limpa. Se esse prazo – agora de oito anos – ainda não fluiu completamente, então o candidato seguirá inelegível até que isso ocorra.

Essa matéria foi expressamente resolvida pelo Supremo Tribunal Federal quando do recente julgamento da Lei da Ficha Limpa, que chegou a essa mesma conclusão. Em julgamento que vincula todo o Poder Judiciário brasileiro, a Suprema Corte afirmou nem mesmo haver ofensa à coisa julgada em tais hipóteses.

Para que não reste dúvida, peço licença para transcrever parte substancial do voto do relator, acolhido pela maioria dos Ministros:

“É essa característica continuativa do enquadramento do cidadão na legislação eleitoral, aliás, que também permite concluir pela validade da extensão dos prazos de inelegibilidade, originariamente previstos em 3 (três) , 4 (quatro) ou 5 (cinco) anos, para 8 (oito) anos, nos casos em que os mesmos encontram-se em curso ou já se encerraram. Em outras palavras, é de se entender que, mesmo no caso em que o indivíduo já foi atingido pela inelegibilidade de acordo com as hipóteses e prazos anteriormente previstos na Lei Complementar nº 64/90, esses prazos poderão ser estendidos – se ainda em curso – ou mesmo restaurados para que cheguem a 8 (oito) anos, por força da lex nova, desde que não ultrapassem esse prazo.

Explica-se: trata-se, tão-somente, de imposição de um novo requisito negativo para que o cidadão possa candidatar-se a cargo eletivo, que não se confunde com agravamento de pena ou com bis in idem. Observe-se, para tanto, que o legislador cuidou de distinguir claramente a inelegibilidade das condenações – assim é que, por exemplo, o art. 1º, I, “e”, da Lei Complementar nº 64/90 expressamente impõe a inelegibilidade para período posterior ao cumprimento da pena.

Tendo em vista essa observação, haverá, em primeiro lugar, uma questão de isonomia a ser atendida: não se vislumbra justificativa para que um indivíduo que já tenha sido condenado definitivamente (uma vez que a lei anterior não admitia inelegibilidade para condenações ainda recorríveis) cumpra período de inelegibilidade inferior ao de outro cuja condenação não transitou em julgado.

Em segundo lugar, não se há de falar em alguma afronta à coisa julgada nessa extensão de prazo de inelegibilidade, nos casos em que a mesma é decorrente de condenação judicial. Afinal, ela não significa interferência no cumprimento de decisão judicial anterior: o Poder Judiciário fixou a penalidade, que terá sido cumprida antes do momento em que, unicamente por força de lei – como se dá nas relações jurídicas ex lege –, tornou-se inelegível o indivíduo. A coisa julgada não terá sido violada ou desconstituída.

Demais disso, tem-se, como antes exposto, uma relação jurídica continuativa, para a qual a coisa julgada opera sob a cláusula rebus sic stantibus. A edição da Lei Complementar nº 135/10 modificou o panorama normativo das inelegibilidades, de sorte que a sua aplicação, posterior às condenações, não desafiaria a autoridade da coisa julgada” (Voto condutor proferido no julgamento das ADCs 29 e 30 e da ADI 4578).

Como se vê, a Lei da Ficha Limpa promoveu alteração substancial nos prazos de duração das inelegibilidades. Mais que isso, suas novas disposições se aplicam a todas as hipóteses de inelegibilidade verificadas anteriormente à sua vigência, cujos prazos, mesmo os eventualmente mencionados em decisões judiciais transitadas em julgado, estão agora ampliados por força da vontade do soberano popular convertida em lei já declarada constitucional pelo STF.

Fonte: Congresso em Foco

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